A Missão de Tranformar o Mundo num Lugar Melhor
Há
exatos 90 anos uma criança nascia para ser um dos grandes literatos
latino-americanos. Claro que ele não sabia disso, e enquanto jovem se
preocupava apenas em se divertir escutando histórias de seu avô e passear com
ele pelo vilarejo de Aracataca na Colômbia.
Dessas aventuras imaginativas de seu
avô nas Guerras Civis da Colômbia, juntamente com aquele ambiente repleto de
bastardos e pobres numa cidadezinha fadada a ser decadente, esse garoto, um
adulto já na década de 1960, se pôs a escrever uma espécie de sínteses de um
problema que via recorrente em seu continente.
Mas, espere um pouco. Naturalmente a
história não é assim. Nunca que coisas grandiosas vêm assim do nada. Ou pelo
menos isso é extremamente raro. É claro que uma inspiração pode significar
muita coisa, e com isso fazer criar algo original. Entretanto, o que há para
entender é que essas inspirações muitas vezes fazem funcionar um circuito de
luzes, unir pontas, ideias e pensamentos em algo. É daí que grandes coisas
surgem. É daí, por exemplo, que uma obra prima da literatura como Cem Anos de Solidão surge.
Gabriel
García Márquez, entretanto, não sabia de Cem Anos de Solidão antes de escrever. O que havia era uma ideia
que foi amadurecendo ao longo de 18 anos. O romancista tinha em mente apenas
escrever algo grande ali na casa dos quarenta. Esse era seu objetivo como
escritor. Nessa trajetória vieram Kafka, Joyce, Faulkner, Woolf. Vieram
leituras de seu próprio continente. Vieram uma carreira jornalística, uma
viagem que o levou a União Soviética, Itália, Paris e Londres. A Revolução
Cubana foi proclamada. Suas primeiras obras foram escritas e publicadas (como A Revoada, Ninguém Escreve ao Coronel, A Má
Hora, Os Funerais da Mamãe Grande). E então, quando via e sentia as
ditaduras eclodirem ao seu redor, decidiu se exilar no México, e lá, em algum
momento de 1965, tudo que havia vivido pareceu entrar numa sintonia onde só o
Universo é capaz de entrar, e então ele criou seu próprio mundo.
Melhor dizendo, ele conseguiu tornar
aquele mundo, Macondo, em um mundo que se mantinha vivo por si só. Essa mesma
aldeia já esteve em outros contos e livros de García Márquez, e com o tempo foi aperfeiçoando. Alguns personagens
célebres apareceram antes de Cem Anos de
Solidão, como é o exemplo de o coronel Aureliano Buendía e Rebeca.
- Um momento, porque você está falando tudo
isso? Não vejo uma clareza nesse texto.
Tudo bem, acalme-se. Tudo que estou
escrevendo vai fazer sentido. Isso não é um texto para falar da criação de uma
grande obra, mas não dá para tirá-la da vivência desse escritor, pois ela
definiu não apenas uma forma literária, não apenas trouxe uma nova face do
romance e alcançando números de vendas jamais imaginados para
latino-americanos; ela também fez alavancar a carreira do autor, e principalmente,
a forma que ele via o seu mundo.
Você já teve aquela impressão que
pessoas veem o mundo completamente diferente de você, certo? E provavelmente
você chegou à conclusão que ninguém vê as coisas iguais, não é? É por aí que
esse texto vai seguir. O que é para ser mostrado é que ao escrever Cem Anos de Solidão, García Márquez deve ter sentido uma
iluminação (claro que isso é só minha forma de narrar: abrindo hipóteses), pois
conseguiu em uma prosa colocar ali todos os pontos que achou primordial para representar
a América Latina. Viu ali toda a violência, injustiça, falta de esperanças, fé
sem sentido, desejos e sonhos sem pé nem cabeça, magia, fantasia, coisas
épicas, sobrenaturais, um destino cujo não temos controle e uma forma de
expressar tudo aquilo que via e sentia. E pode concretizar essa realidade ao
publicar, e posteriormente ter vendido 50 milhões de cópias no mundo. Outros
países puderam ver essa realidade desaforada que vivemos, essa terra de sonhos
e esperanças que já nascem mortos. Naquele livro ele pode expressar como ele
via a sua terra.
E é graça a ele que hoje podemos ter
uma noção de quem somos nós. Isso mesmo, ainda hoje no século XXI, quase 50
anos da publicação desse livro (faz aniversário em junho). Claro que muita
coisa mudou, pessoas morreram, escritores surgiram, impérios caíram, guerras
acabaram, assim como outras guerras começaram. Claro que aquela sua realidade
já não é a mesma de hoje. Se pudéssemos tomar suas perspectivas como as nossas,
eu não saberia dizer se agora tudo ta melhor ou pior que antes. Diferente,
obviamente está... mas o que interessa é que seu pensamento ainda está vivo
hoje, imortalizada por sua obra – o momento exato do passado(1965-66) sido
representado por uma narrativa.
Somos capazes de percebermos isso
num simples exercício de empatia, ou no mínimo simpatia. Basta ler esse livro e
perceber que ele parece tão atual. É aquele momento que passamos a ver as
coisas se repetindo, impressões que você está passando pelas mesmas coisas de
seus pais, ou até mesmo de sua infância. É ver coisas se articulando, agindo da
mesma forma, quase como se as coisas estivessem dando voltas – que tudo
estivesse fadado a se repetir. Você já sentiu isso? Claro que esse exercício é
algo bem particular, mas quero crer que você, em algum momento de sua vida até
agora, já sentiu isso. Espero, caso não tenha sentido, que nunca venha a sentir
essas coisas, pois o que geralmente acontecesse repetidamente são as coisas que
consideramos ruim.
É isso que esse escritor sacou. Não
apenas sentiu essa repetição das desventuras latino-americanas, como tentou, ao
longo de alguns anos desde que a ideia começou a amadurecer, estabelecer o
motivo, explicar porque essas coisas acontecem com a gente. Em 1965 e 66,
acredito que ele não só conseguiu a chegar próximo de um resultado a sua
pergunta, mas encontrou nela a síntese do próprio mundo que vivia, e isso não
apenas na América Latina, mas em todos os lugares. Enquanto não tivermos voz
sobre as nossas próprias vidas, ou seja, enquanto outros decidam quando, onde,
porque ou o quanto vivemos nossas vidas, jamais estaremos livres dessas
repetições. Enquanto não deixarmos por escutar o nosso passado, sem negá-lo ou
oblitera-lo, estaremos aqui vivendo o ontem. Enquanto continuarmos com nossas
amnésias típicas frente a problemas que estão intrinsecamente ligados as nossas
vidas, estaremos sempre condenados á solidão, e quando percebermos todas essas
problemáticas do nosso mundo, talvez já não possamos ter uma segunda chance.
Esse é o grande perigo que Gabriel
García Márquez estava tão preocupado em expor; e infelizmente gostaria de
te dizer, querido colombiano errante e nostálgico, que ainda não conseguimos
deixar de ser cegos para esses grandes problemas de vida. Gostaria de agora
poder afirmar com felicidade que aquilo que você estava ciente em 1966, não
acontecesse mais, pois só aí sentiria satisfeito de homenagear seu aniversário.
Mas não posso fazer isso. Não posso mentir, e o que resta a
fazer para que seus pensamentos não morram como todas essas coisas que tratamos
de esquecer, por parecer não haver soluções, é simplesmente continuar buscando
alguma solução. Continuar nessa circularidade até achar uma brecha. O que posso
afirmar, por mais que eu não tenha certeza (digamos que seja fé), é que ainda
há pessoas dispostas a encontrar o que possamos fazer diante dessas
desventuras. E acredito que a cada ano, apesar dos inúmeros silêncios que a
mídia e a política trata de impor a nós, somos um pouco mais do que antes.
Lutadores que lutam sem esperanças, iniciam brigas sabendo que não há como sair
bem dela, fazem as coisas mesmo não tendo muitas utopias, quase como se na
essência e apenas ela o motivasse a lutar contra injustiça que cresce cada vez
mais.
“Poetas e mendigos,
músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós, criaturas daquela
realidade desaforada [América Latina], tivemos que pedir muito pouco à
imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos
convencionais para tornar nossa vida acreditável. Este é, amigos, o nó da nossa
solidão.”
Gabriel
García Márquez é considerado por Ángel
Rama, crítico literário uruguaio, como aquele que mais conseguiu sintetizar
o problema latino-americano e universal nos tempos de hoje. Não apenas isso,
mas que com sua prosa conseguiu atingir, pela primeira vez na América Latina,
um público imenso. As tiragens antes do da década de 1960 dos livros ficava em
torno de 3.000 por edição. Cem Anos de
Solidão teve uma tiragem inicial de 10.000 e pouco depois alcançando o
valor de 100.000. A tradução portuguesa aqui no Brasil já deve estar pela 90°
edição. Atualmente o livro já passa da marca 50 milhões de cópias vendidas.
Vendo o quão fácil é encontrar esse livro em sebos, podemos ter uma noção de
que muitas mais pessoas leram esse romance. O escritor, sabendo ou não se
aquele livro venderia tanto, conseguiu apresentar o seu pensamento não apenas a
uma pequena camada de intelectuais, como levou sua problemática a qualquer um
que sabia ler ou ao menos escutar. Gerald
Martin, seu biógrafo e professor emérito de literatura latino-americana da
Universidade de Pittsburgh, o considera como o 1° escritor globalizado do
mundo.
Agora, o que seria a literatura, ou
até o mundo sem a existência desse escritor como escritor, isso é, se, enquanto
estivesse fazendo Direito em Bogotá, capital da Colômbia, decidisse realmente
seguir essa carreira, abandonando assim a literatura? Ah, não saberei dizer
(rsrs). Talvez futuramente eu possa começar a pensar sobre isso, mas por
enquanto vou apenas revelar que mais de 200 estudos sobre ele e suas obras
deixariam de existir. Talvez a problemática da identidade latino-americana não
tivesse tanto peso. Mas, no final, isso é apenas tentar gratifica-lo por aquilo
que ele fez à literatura e a história, mas não quem realmente foi, pois antes
de tudo García Márquez era um homem,
humilde, brincalhão, adorava fazer pegadinhas com os críticos e jornalistas,
adorava relatar seu mundo, criticá-lo; tentava a todo custo achar uma forma
para transformar o mundo num lugar melhor. Teve suas falhas, afinal, quem não
tem? Pode ter apoiado um sistema (Revolução Cubana) que muitos trataram de se
opor, pode ter gostado da imagem do bom patriarca, ou ser criticado por
declarar abertamente de esquerda. E apesar de todas as suas falhas e ganhos,
nunca deixou de se considerar latino-americano, jamais deixou de acreditar na
América Latina, por mais que fosse difícil; nunca a renegou, lutou sempre para
buscar uma independência cultural, social e intelectual dela. Posso até dizer
que durante grande parte da sua vida lutou por um sonho fadado ao fracasso, mas
isso nunca o impediu de acreditar.
“Num dia como o de
hoje, meu mestre William Faulkner disse neste mesmo lugar: ‘Eu me nego a admitir
o fim do homem’. Não me sentiria digno de ocupar este lugar que foi dele se não
tivesse a consciência plena de que pela primeira vez desde as origens da
humanidade, o desastre colossal que ele se negava a admitir há 32 anos é, hoje,
nada mais que uma simples possibilidade científica. Diante desta realidade
assombrosa, que através de todo o tempo humano deve ter parecido uma utopia,
nós, os inventores de fábulas que acreditamos em tudo, nós sentimos no direito
de acreditar que ainda não é demasiado tarde para nos lançarmos na criação da
utopia contrária. Uma nova arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa
decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o
amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de
solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra.”
Enfim, parabéns Gabriel García Márquez. Hoje infelizmente não temos você aqui
conosco, mas acredito ter feito tudo àquilo que teve em mãos, e ainda mais.
Seus sonhos, pensamentos, ideias e motivações, apesar de parecerem idealizados,
não morrerão enquanto sua obra não cair no esquecimento. Ainda há pela frente
muitos jovens que abrirão seus livros e suas crônicas, jovens acadêmicos que o
estudarão por verem na sua imagem algo a mais, e que logo descobriram que o mais na verdade não existe, pois você
mesmo se tratou como um latino-americano de igual para igual aos outros, como
um humano preocupado em ver as coisas melhorarem, em tentar dar uma segunda
chance a todos, assinalando que, se recebeu o Prêmio Nobel em 1982 é porque,
por ironia do destino, teve um pouco de sorte. Enquanto eu viver estarei
falando de você para os outros, narrando as histórias de seus livros para
amigos e parentes, sendo o chato que faz a todo custo os outros lerem seus
romances, fazê-los entender porque, para mim, você se tornou uma imagem
emblemática.
Para finalizar de vez, deixo um último agradecimento a esse colombiano latino americano nostálgico e errante, que com suas histórias tratou de contar sua realidade e sua filosofia, mudando a forma que olhamos para nós mesmo, e por consequência, mudando o mundo.