A Fantasia como nossa Realidade

07:47 Unknown 0 Comments


Stranger Things nos possibilita pensar e refletir aspectos que leitores, telespectadores e cinéfilos enfrentam praticamente todos os dias. Se sua vida passa a ser muito mais de livros, séries, filmes, HQ’s, é normal receber críticas de que todas essas coisas são meras “coisas”. “É só uma série”, “é só um livro”. Isso é bem recorrente. Sentimos então uma angustia rotineira por não conseguirmos explicar o porque delas serem tão importantes quanto andar, respirar e dormir. Elas fazem parte do nosso mundo, da nossa formação como indivíduos.
Espero agora que você tenha assistido toda a segunda temporada da série, caso contrário, esteja ciente que há spoilers morro acima. Agora junte suas tralhas, ponha tudo na mochila, aperte a alça, beba água para ficar hidratado, e vamos comigo sair dessa caverna.


Desde a primeira temporada conhecemos inimigos monstruosos que, a princípio, não têm nomes. Monstros de outra dimensão, tenebrosos e assustadores. Como lidar com algo que você não conhece? Afinal, as crianças não fazem ideia do que estão enfrentando. Mas elas dão uma simples aula de como lidar com uma ameaça que não é compreendida: nomear o monstro. Demogorgon é o nome dele, e elas tiram isso de um jogo famoso de RPG, Dungeons and Dragons (D&D). Esse jogo é cheio de elementos de fantasia, desses que normalmente encontramos em literatura de fantasia como – claro que vou citar ele – O Senhor dos Anéis (entretanto, não apenas dele).


Daquele momento em diante a fantasia passa a fazer parte do mundo delas. O monstro é real, elas o veem e sentem, e agora tudo mais faz sentido, porque foi necessário aquele nome para entenderem exatamente como lidar com a situação. Não foi apenas a criatura que ganhou sentido, mas o próprio Mundo Invertido, ou que antes era chamado Vale das Sombras, uma dimensão que é o eco da nossa, sombria e escura. Agora eles não apenas sabem o que o monstro é, como o mundo que ele habita.
Agora, a segunda temporada mantém exatamente a mesma coisa. O Demogorgon e o Mundo Invertido já não são novidades, mas o monstro das sombras é. Ele é muito mais perigoso que a criatura da primeira temporada: primeiro, pelo simples fato de que ele controla os Demodogs e constrói um exército deles; segundo, porque ele também possui Will, que vira então um “superespião”, quase um agente duplo.


Quando todo mundo está na casa dos Byers esperando a ajuda chegar, a mente de Lucas e Dustin iluminam-se. O Monstro das Sombras liga todos os cipós, os Demodogs, assim como Will, fazendo todos sentirem o que ele sente. Ele é o cérebro. De relance então vem o que Sr. Clarke, o professor das crianças, fala com todo o seu discurso científico. Assim, o nome Mente de Colmeia surge na conversa; consciência coletiva e superorganismos também são citadas. E então Dustin tem mais um relampejo, descobre que o Monstro das Sombras na verdade é o Devorador de Mentes (Mind Flayer).



[DUSTIN] - Um monstro de uma dimensão desconhecida. Tão antiga que nem conhece seu verdadeiro lar. Ele escraviza raças de outras dimensões tomando seus cérebros com poderes psiônicos desenvolvidos.
E então vem aquela pessoa chata, o cético, com o discurso que todos conhecemos.
[HOPPER] – Nada disso é real. É um jogo de crianças.


A realidade é muito dura, não é Hopper, que mesmo quando há um bando de monstros matando pessoas, crianças com poderes e outra dimensão você ainda vem e fala que nada daquele mundo de fantasia que encontramos no RPG é real. Pois bem, se ele não era, passou a ser no momento que as crianças encontraram uma metáfora para que a própria realidade deles tenha algum sentido. 


[DUSTIN] – Essa é a melhor metáfora...
O Lucas interrompe.
[LUCAS] – Analogia.
[DUSTIN] – Beleza, é uma analogia para entendermos o que é isso.





Joguinho de palavras interessante, não é? Vamos abrir o dicionário:

 Metáfora é uma figura de linguagem onde se usa uma palavra ou uma expressão em um sentido que não é muito comum, revelando uma relação de semelhança entre dois termos.
(...) Metáfora é a comparação de palavras em que um termo substitui outro. É uma comparação abreviada em que o verbo não está expresso, mas subentendido.
(...) A metáfora é uma ferramenta linguística muito utilizada no dia-a-dia, sendo importantíssima na comunicação humana. Seriamente praticamente impossível falar e pensar sem recorrer à metáfora.
(...) Muitas vezes as pessoas não querem ou não conseguem expressar o que realmente sentem. Então falam frases por metáforas onde seu significado fica subentendido.

Basicamente nós falamos, entendemos e vivemos de metáforas. Ela nos ajuda na comunicação de nós mesmos, para transmitir ideias, reflexões, pensamentos e sentimentos; de uma forma não direta, mas indireta, subentendida. Para Steve entender tudo que as crianças estão contando, ele necessita de uma metáfora e/ou uma analogia que faz parte do seu mundo.


[DUSNTIN] – Ele (Devorador de Mentes) quer nos conquistar. Ele acredita ser uma raça mestre.
[STEVE] – Como os alemães?
[DUSTIN] – Os nazistas?
[STEVE] – Sim, os nazistas.
[DUSTIN] – Se os nazistas fossem de outra dimensão... Ele (o Devorador de Mentes) considera outras raças, como nós, como inferiores.

 
Acho que nosso repertório de falas está finalizado... Dando prosseguimento ao texto, fique atento com a forma que Steve encontra para entender aquele monstro. Ele precisa de uma referencia do mundo (nazismo) dele para entender uma criatura de outra dimensão; porque, afinal, seu mundo não é o de fantasia (uma pena para ele). Mas o das crianças é; e é tão importante aquele mundo cheio de seres incríveis e místicos, que ele é transposto para a realidade de todos, ao ponto que o grupo inteiro entende a metáfora ou analogia de Dustin, começando a chamar aquela consciência coletiva de Devorador de Mentes. Não apenas isso, como sai do campo teórico, da explicação, e passa ao prático, em que eles montam uma estratégia para enfrentar a criatura; por mais incrível que pareça, aquilo surte efeito.
 A fantasia tem efeito sobre o nosso mundo “real” e é poderosa o suficiente para fazer-nos lidar com a realidade.
Outra forma de entendermos isso é comparando dois discursos. O científico, representado pelo professor das crianças: Sr. Clarke; e o ficcional, o da fantasia, representado pelo jogo de RPG, D&D. O primeiro discurso usa igualmente termos – como o segundo – para explicar a realidade: consciência coletiva, mente de colmeia e superorganismo. O discurso da fantasia fala de Devorador de Mentes. E por um curto momento o discurso histórico também surge, falando de nazismo. Naturalmente todos conseguem e podem até preferir entender sua realidade a partir de um dos discursos. Mas a graça é que escolhemos o mais conveniente para nós.
Acontece que aquela pessoa chatona que não entende a ficção de livros, séries, filmes e HQ’s, passa a ser ignorante por não querer compreender aquela outra forma de lidar com o mundo objetivo (o mundo “real”). E dá no que dá...


Mas agora você se perguntam o por que tive que utilizar uma série de Tv como metáfora também para explicar alguma das minhas reflexões. Eu digo então que, o que disse até agora ajuda entender também a própria série. Tudo que a trama desenvolveu ao longo de sete episódios só se torna mais concreto e ganha um maior sentido quando as crianças, no oitavo episódio, compreendem o que aquela criatura é. E nós também sentimos aquilo. Não sei vocês, mas eu fico ainda mais assustado e temeroso com o Devorador de Mentes, pois seu perigo não é apenas da coerção física e violenta, agora é também psicológico. Estamos lidando com dominação mais profunda e difícil de enfrentar, pois a força física não adianta mais aqui. Tanto é que no final o monstro não é derrotado. O portal de fecha, mas a criatura não morre. Ela ainda está lá observando atentamente cada passo, cada ação, cada suspiro das crianças, principalmente de Eleven.


Aquele portal que trazia tantas coisas horríveis como inimizade, descrença, traições, manipulação, depressão e inseguranças agora está fechado, mas a entidade depreciativa ainda está nos rondando mesmo nos nossos momentos felizes, esperando uma vez mais para atacar.


Nem tudo é tristeza, no entanto, pois se uma coisa a série mostra muito bem é como lidar com todos estes problemas da vida. Amizade, amor, companheirismo, jogos, músicas, danças e beijos, talvez sejam um bom caminho para trilhar. Não podemos ficar sentados e esperar lá no Condado; devemos ir até Mordor – o problema –, enfrentar tudo aquilo, para enfim compreendermos alguns sentidos da vida. E então podemos voltar, diferentes obviamente.


E assim Stranger Things transpõe o campo da fantasia para fazer efeito sobre nós, pois assim como as crianças usam metáforas para entender seus problemas e as situações que estão passando, a série é uma grande metáfora livre para nós interpretarmos, e tirarmos dela um sentindo que tem efeito sim na nossa realidade.

 


Livros, séries, filmes e HQ’s não são apenas livros, séries, filmes e HQ’s. Se liga!


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Eae, pessoal, gostaram do texto? Muito bem, quero indicar algumas postagens do blog que podem ajudar ainda melhor compreender tudo is. O primeiro é a análise da 2° Temporada de Stranger Things, cujo alguns aspectos de lá estão aqui. O segundo é um texto sobre História e Literatura, que apresento uma conversa sobre ficção. (só clicar em cima das marcações)