Os Segredos Textuais de Rick and Morty
Apesar de o
entretenimento se dividir em muitas mídias (literatura, teatro, cinema, TV, et cetera), configurando diferentes
maneiras de o público absorver a arte em geral, existe um elemento estrutural
que está presente em toda esfera da cultura: o texto. Tal elemento dita regras
que não podem ser postergadas por um livro, filme, ou no caso, uma animação,
pois o texto é uma característica linguística e a linguagem abrange tudo em
nosso mundo, incluindo, logicamente, o entretenimento.
“Rick and Morty” possui um texto complexo, que
carrega em suas entrelinhas diversas formas de reflexão. Sejam elas de natureza
científica, filosófica, social ou psicológica, fica claro após uma simples
análise que “Rick and Morty” utiliza o humor como ferramenta para transportar
pensamentos mais profundos para seu telespectador. Por mais que o caráter
visual de uma animação ganhe o maior espaço nesta forma de entretenimento em
si, é no texto que vive a essência complexa do seriado, que obriga público a
sair de sua zona de conforto com frequência.
"A Cidadadela dos
Ricks definha como modelo de sociedade fundamentada em paradigmas de valor
idealizado"
“Rick and Morty” é uma
animação televisiva que cumpre muito bem o papel de divertir o público em
geral, mas também permite reflexões mais profundas e elaboradas, dada a tamanha
quantidade de informações e inserções abstratas ao longo de seu enredo. Mesmo que
tal afirmação pareça, de certa forma, carregada de presunção, não se compreende
com abrangência “Rick and Morty” sem antes depreender que a animação possui, de
fato, um texto complexo. Após estabelecer tal realidade, torna-se mais clara a
análise do caráter niilista de Rick (cujo desapego quase que completo correlaciona
ao resguardo da existência humana é claro e manifesto), o existencialista de
Morty (ciente da diminuta importância do ser humano no universo, mas que sente
o dever de salvaguardar a vida de modo passional), e a insanidade – que está presente em todas as aventuras da dupla ao longo das
três temporadas.
“Rick destruído após
ter sua identidade individualista confrontada pela consciência coletiva de
Unity”
Mas como se desenvolve
a estrutura textual de “Rick and Morty”? Bom, antes de mais nada é preciso
explicitar que um texto não é simplesmente um aglomerado de frases. É
necessária a enumeração e compreensão de significados
(basicamente como o desenho me mostra isso ou aquilo), bem como a ordenação do
contexto apresentado, pois o contexto é a primeira impressão que o público tem
em ordem de iniciar sua compreensão do desenho.
No caso de “Rick and Morty”, o contexto se traduz na desajustada família de
Rick, onde a raiz do casamento de Beth e Jerry é uma gravidez não planejada
(Summer), a consequência é um aglomerado de frustração nostálgica, insucesso
profissional e pessoal, entre outras coisas, que findam em uma gradual
desconexão entre os membros da família. Tal desconexão é acentuada com a mera
presença de Rick, que salvo alguns espasmos, não demonstra qualquer conexão
afetuosa com os demais. Ou seja, para se fazer uma boa leitura inicial do
desenho é necessário levar em conta o contexto na qual está inserida.
Então o espectador se encaminha
progressivamente para notar que todo texto contém algo a declarar dentro de um
debate de escala mais ampla. Nenhum texto é uma peça isolada, nem a
manifestação da individualidade de quem o produziu. De uma forma ou de outra,
constrói-se um texto para, através dele, marcar uma posição ou participar de um
debate de escala mais ampla que está sendo travado na sociedade. Até mesmo uma
simples notícia jornalística, sob a aparência de neutralidade, tem sempre
alguma intenção por trás. O que não é diferente em “Rick and Morty”, e o
espectador, entendendo isso, passa a absorver o que cada episódio quer dizer
sobre nossa sociedade, nosso mundo, nossa existência, sobre a nossa realidade
pessoal.
“As lembranças felizes e mortais da família de
Morty”
Como salientado acima,
“Rick and Morty” explode informações em cima do telespectador, indiferente se o
mesmo as compreende ou não. Caracteriza-se então a intertextualidade (quando um
texto faz referência a outro) como um dos fatores textuais da animação. Nesse
fator, o escritor/criador da obra pressupõe que o leitor/espectador compartilhe
com ele de um mesmo conjunto de informações a respeito das obras que compõem um
determinado universo cultural. A forma de intertextualidade mais utilizada em
Rick and Morty é a paródia (raiz do humor presente no enredo), que é quando um
texto cita outro invertendo seu sentido, contestando-o, deformando-o afim de
com ele polemizar. Os exemplos se acumulam, bem como as informações nos
episódios, mas vale recordar passagens paródicas como o plano de Rick, que
queria transformar Morty em Adão e Jessica em Eva; a ideia de se criar um
sistema de sociedade fundamentado em paradigmas de valor idealizado como a
Cidadela dos Ricks; ou a aparente supremacia de um criador de universos que se
preocupa em reestabelecer controle sobre sua criação afim de correr para a
sorveteria mais próxima. Entre tantos outros exemplos.
Também foi visto que
todo texto possui um pronunciamento e, ao fazer essa manifestação de ideias, o
autor trabalha com as noções de seu tempo e da sociedade em que vive. Com
efeito, as concepções, as ideias, as crenças, os valores – ou seja, a cultura –
não são tiradas do nada, mas surgem das condições da existência. Assim se
estabelece as relações que o texto possui com a história, reiterando-se que
todo o texto incorpora e integra as ideias da sociedade e da época em que foi
produzido. Por exemplo, nos anos 1980, após muito tempo, estava estabelecida a
fórmula da felicidade humana. Consistia em, ao alcançar a idade adulta, estudar
para garantir uma graduação, trabalhar, construir uma casa, casar-se e ter
filhos, formando uma família, que nada mais seria o ápice da conquista humana.
Não só a sociedade americana (muito influente não só na indústria de
entretenimento, como também na idealização de valores) como a sociedade mundial
agregaram grande apreço por essa fórmula, considerando desajustados e excluídos
todos os que nela não se encaixavam.
“Pickle Riiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiick!”
Contudo, algumas
pessoas não só discordavam desses conceitos como também deram voz à subversão
desses valores, trazendo horror às percepções da sociedade conservadora. Nesse
contexto nasce a animação “Os Simpsons”, parodiando toda a significância do
extremo valor familiar, mostrando o quão descabida é essa noção, pois tal se
pautava necessariamente nas aparências, na preocupação com o juízo de
terceiros. Muitos anos se passaram e hoje em dia, a crítica presente em “Os
Simpsons” já não é mais novidade, tornando o seriado em muitos aspectos obsoletos,
preso a limites conceituais passados. Limites que são ultrapassados com
facilidade por “Rick and Morty”, que traz conteúdos muito mais pertinentes à
nossa época, abrangendo não só o contexto familiar como também o social e
existencial, filosófico e científico. Não cabe pesar a qualidade real entre as
duas animações, apenas cabe verificar como a análise temporal de ambas
animações influencia no continente das mesmas. Ainda mais quando se analisa a
alteração da abordagem das artes de forma abrangente, ao longo da história
humana. De um modo geral, na era clássica os conflitos se baseavam no embate
entre homem e natureza; na era moderna os conflitos abordavam o confronto entre
homem e sociedade; na pós-modernidade o confronto mais salientado coloca frente
a frente o homem e a tecnologia, homem e a realidade (contexto no qual se
encaixa Rick and Morty). Até mesmo as percepções de bem e mal mudam com o
passar do tempo. Faça um exercício de comparação entre o personagem mais
subversivo de “O Simpsons” e o de “Rick and Morty” e constate o quão humanos
diferentes eles são (Homer e Rick).
Bom, indo mais além,
existe outra característica textual na qual “Rick and Morty” está fundamentado,
os níveis de leitura de um texto. Ao primeiro contato com um texto qualquer,
por mais simples que pareça, normalmente o leitor/espectador se defronta com a
dificuldade de encontrar a unidade por trás de tantos significados que ocorrem
na sua superfície. Na primeira leitura, parece impossível encontrar qualquer
ponto para o qual convirjam tantas variáveis e que dê ordem à aparente desordem.
No entanto, quando se trata de um bom texto, como o de “Rick and Morty”, por
trás do aparente caos, há ordem. Quando, após várias leituras, encontra-se o
fio condutor, a primeira impressão de desorganização cede lugar à percepção de
que o texto tem harmonia e coerência.
Mas como compreender os
níveis de “Rick and Morty”? Há basicamente três níveis de leitura que se
distinguem um do outro pelo grau de abstração.[1] As
diversidades se manifestam no nível da superfície do texto, e a unidade se encontra
no nível mais profundo. Assim se comportam os três níveis:
1 -
Uma estrutura superficial, onde afloram
os significados mais concretos e diversificados. É nesse nível que se instalam
no texto os personagens, os cenários, o tempo e as ações concretas. Assim, se
encaixam os papeis de cada personagem da família de Rick – o tipo de atividades
e aspirações primárias eles têm e como estas diferem entre si. Depreende-se até
Morty como uma espécie de ponte entre o contexto ordinário da família e o
contexto extraordinário proporcionado pelas aventuras com Rick.
2 -
Uma estrutura intermediária, onde se
definem basicamente os valores com que os diferentes sujeitos entram de acordo
ou desacordo. Nesse nível o caráter dos personagens nos saltam à vista, como
por exemplo, o quase que completo descaso de Rick em correlação à existência,
fazendo-o postergar até mesmo o apreço que tem pelo próprio corpo, permitindo-se
transformar de maneira hilária em um picles; também o caráter existencialista
de Morty que se contrapõe ao modo de ver a vida de Rick, sem precisar se
fundamentar em preceitos religiosos para ser crível, tornando o garoto um dos
personagens mais profundos da animação.
3 -
Uma estrutura profunda, onde ocorrem os
significados mais abstratos. É nesse nível que se podem postular dois
significados que se opõem entre si e garantem a unidade do texto inteiro. É
aqui que passamos a compreender que o ritmo frenético dos acontecimentos na
animação se dá como uma forma de salientar o quão diferentes e complexos são os
membros da família de Morty, em uma analogia extremamente bem elaborada da
humanidade em geral. As características singulares dos personagens entram em
choque o tempo inteiro, provocando reflexões de diversas naturezas no
espectador. Um grande exemplo disso é quando Rick, Beth, Jerry, Summer e Morty
se veem enclausurados com seres que representam as lembranças da família, que
se aglutinam para destruí-la sistematicamente, antes de Morty compreender que
tais lembranças parasitárias se alimentavam das aspirações e personalidades de
cada membro.
“Temos que nos comportar senão seremos
castigados”
Uma vez no contexto da
estrutura profunda do texto, oposições do tipo: liberdade versus submissão, vida versus
morte, natureza versus civilização
unidade versus multiplicidade, et cetera, surgem aos montes. A análise
de um texto não consiste apenas em encontrar a oposição reguladora dos seus
sentidos, pois, se somente isso for feito, reduziremos sua riqueza
significativa a quase nada. Entretanto, a importância de se detectar a
estrutura fundamental de um texto reside no fato de que ela permite dar uma
unidade – uma direção, um fio condutor que engloba todos os elementos do
desenho – profunda aos elementos superficiais, que, à primeira vista, parecem
dispersos e caóticos.
Cada um dos polos opostos
da estrutura profunda vem investido de uma apreciação valorativa. Em “Rick and
Morty”, por exemplo, vemos Rick dar valorização positiva à unicidade (convergência
de ideias em vez de valorizar a diversidade) e negativa à multiplicidade social,
inclusive gerando um episódio memorável na segunda temporada onde Rick se vê
impelido a refletir sobre seus conceitos e anseios. Nesse sentido de estrutura
narrativa se descreve melhor os objetos com os quais o sujeito entra em relação
de posse ou privação. Objeto, nesse caso, não deve ser entendido como uma
coisa, mas como tudo aquilo que um sujeito pode adquirir ou perder: riqueza,
amor, alegria, et cetera. Assim fica
compreensível os motivos de Rick ficar em frangalhos no fim do episódio
exemplificado.
Há muito o que se falar
e de se analisar “Rick and Morty”, como
a relação textual entre temas e figuras presentes no cerne da animação, onde as
figuras são ferramentas concretas e bem definidas colocadas em cena apenas para
carregar temas e significados abstratos e reflexivos, criando uma atmosfera
orgânica de profundidade singular:
“Temos que nos
comportar senão seremos castigados”.
“Qual é cara, você tem
que ficar schwifty!”.
Com esse pequeno artigo
apenas se ilustra como o texto da animação gera influência direta em seus
significados, tornando “Rick and Morty” uma produção realmente protuberante em
face às outras que dividem espaço de concorrência pela atenção do público.
[1] Os três níveis são referenciados de José Luiz Fiorin, Francisco Platão Savioli, Grant Snider.
. . . . . . . .
Fala ae, pessoal, tudo certo? Quero salientar que esse belíssimo texto de Rick and Morty foi escrito pelo novo colunista do blog, Bruno Birth. Todos os devidos créditos vão para ele! Agradeço imensamente por ter deixado para nós esse texto tão profundo! ele estará agora bem presente no Máres Literárias. Então aguardem mais ótimos artigos.